Por Maurício Palma Nogueira*

A notícia de que a Assembleia Legislativa do estado de São Paulo havia aprovado o projeto de lei que limita a comercialização de carnes às segundas-feiras, na última semana de 2017, fechou o ano em que a pecuária de corte brasileira foi bombardeada por sequências de acontecimentos, especulações, sensacionalismo e perseguição perpetrados pelo ativismo obscurantista.

O texto, do deputado Feliciano Filho (PSC), proíbe o fornecimento de carne às segundas-feiras em restaurantes, lanchonetes, bares, escolas, refeitórios e estabelecimentos similares que exerçam suas atividades nos órgãos públicos do Estado de São Paulo. Ao defendê-lo publicamente, o deputado personifica o que há de pior na atuação pública dos representantes brasileiros: a irresponsabilidade no exercício de cargos com poder para impactar a sociedade.

Além de ignorar completamente os princípios econômicos em torno de qualquer atividade produtiva, o texto carrega o caráter ditatorial típico dos pequenos grupos privilegiados que decidem, do alto de sua soberba, qual deve ser o comportamento da sociedade. Essa é a essência das ações que provocaram as piores tragédias humanas, causadas pelos próprios humanos. Ações como essa sempre são defendidas por pessoas que se julgam moralmente superiores empunhando alguma bandeira nobre, embora os seus efeitos práticos sejam sempre muito distantes daquilo que se pretendia inicialmente.

Pela total inadequação do projeto de lei, tanto do ponto de vista técnico como democrático, no início de janeiro a expectativa era que o Governador Geraldo Alckmin vetasse o texto na íntegra, o que já havia sido sinalizado pela assessoria de imprensa, pela Secretaria da Agricultura e pelo próprio Governador.

Em entrevista ao Canal Rural, no dia 02 de janeiro, o Governador antecipou o veto ao projeto de lei. Ainda assim, é importante que o setor se lembre da necessidade de manter a vigilância e se comunicar melhor. Mesmo que o projeto não se efetive, é imprescindível lembrar que a mobilização de empresas, associações, pesquisadores e consultorias, para responder questões de cunhos ideológicos, gera um custo elevado. Esse custo será absorvido pela cadeia produtiva, que por sua vez, acaba perdendo competitividade.

Diante da importância do assunto, a Agroconsult Pecuária gerou uma série de estimativas e análises que foram enviadas, ao final de dezembro, para diversos interlocutores que poderiam exercer alguma pressão. Parte deste material compõe este artigo e outros que foram, ou ainda serão, divulgados.

A bovinocultura brasileira vive um momento novo na sua trajetória histórica. Depois de passar duas décadas se adaptando à uma nova realidade econômica, finalmente a consolidação pareceu ter ocorrido por volta de 2010. A atividade, que chegou no início dos anos 1990 baseada na expansão horizontal e na estocagem de animais, começou a mudar junto com a economia a partir do estabelecimento Plano Real. Essa adaptação, pouco compreendida pelos leigos no assunto, custou muito aos empresários do setor. O enxugamento do estoque excedente de animais, oriundos de sistemas de baixa produtividade típicos do período pré 1990, implicou em prejuízos, tanto aos pecuaristas como aos frigoríficos. Até 2010, o balanço setorial médio da produção de carne era negativo. Ora os prejuízos eram mais intensos nas fazendas, ora nos frigoríficos, situação que causou o sucateamento dos bens em grande parte das unidades produtivas.

A partir de 2010, acredita-se, os estoques excedentes de animais para abate começaram a se ajustar, fazendo com que a oferta, finalmente, passasse a ser mais dependente da capacidade de resposta produtiva que da presença de um estoque improdutivo.

A redução da área líquida de pastagens, que vinha ocorrendo desde o início dos 1990, entrou num ritmo mais acelerado. Com isso, de uma taxa média de redução de 500 mil hectares por ano, a área começou a recuar 2,35 milhões de hectares ao ano.

Representantes de órgãos ambientais oficiais e de iniciativas não governamentais, focadas em sustentabilidade, refutam essa realidade que pode ser concluída a partir dos dados mais detalhados sobre a organização espacial das atividades agropecuárias. A construção da figura 1 nada mais é do que a soma das informações mais atuais disponíveis sobre o território brasileiro. Em geral, são estudos financiados e apoiados pelas organizações oficiais, ou não, cujos técnicos insistem em recusar os dados.

Pelo próprio Map Biomas e por um estudo encomendado pela Rede Fomento, já é possível observar que a área de pastagens está com aproximadamente 9,5 milhões de hectares a menos do que é mostrado na figura 1. Trata-se da área em integração com lavoura e pecuária.

A recusa em aceitar a análise deve-se a uma constatação inconveniente do ponto de vista de quem vem insistindo em soluções empíricas para as questões de sustentabilidade. O fato é que não há desafio algum na liberação de áreas da produção pecuária para qualquer que seja a demanda que se identifique: agricultura, reflorestamento, adequação ao Código Florestal, etc. Na verdade, a área de pastagens tem se reduzido a um ritmo superior a todas essas demandas, o que nos permite concluir que áreas abertas nas últimas décadas estão novamente se transformando em florestas. Diante do fato, o desafio da sustentabilidade na pecuária deixa de ser ambiental e passa a ser social.

A grande questão não é se a pecuária será capaz de entregar determinadas áreas para outras atividades. A questão é o que fazer com os que serão excluídos das áreas que irão sobrar. Daí vem a inconveniência para quem passou anos investindo recursos para soluções de um problema que não existe mais. O problema é outro.

Hoje, com dados mais elaborados, confirma-se a tese que a Agroconsult Pecuária trabalha desde 2010 e apresentada publicamente em 2012, por meio de artigos, palestras e nas conclusões da terceira edição do Rally da Pecuária: o ritmo de tecnificação da pecuária supera as demandas ambientais

Com apenas duas edições levantando informações a campo (na primeira não foi estabelecido um critério de avaliação), já se percebeu a necessidade de alterar os objetivos do Rally da Pecuária para as edições seguintes. A preocupação maior passou a ser o perfil do produtor e a capacidade de resposta diante dos desafios de mercado.

Nas últimas quatro edições do Rally da Pecuária, um dado preocupante vem se repetindo numa proporção quase que exata entre um ano e outro. Cerca de 20% dos produtores, com nível de tecnologia duas vezes acima da média observada no público, concentraram 50% do total das vendas desse mesmo público. Essa concentração é mais preocupante quando lembramos que a produtividade dos pecuaristas entrevistados pelo Rally da Pecuária é bem acima da média nacional. O desempenho do público acessado é duas vezes e meia acima da média nacional.

Se fosse possível mensurar todas as fazendas, teríamos um número muito mais alarmante. Alguns dos maiores frigoríficos do país já confirmaram que algo entre 15% dos fornecedores representam 70% a 80% das compras de matéria prima.

Os preços de mercado, portanto, tendem a se adaptar aos produtores que ofertam as maiores quantidades de produtos. Quanto maior o nível de tecnologia, maior tende a ser a rentabilidade, o que permite concluir que tais produtores suportam preços mais baixos, enquanto os de menor tecnologia aceleram as filas de exclusão. Se for um médio ou grande produtor em processo de exclusão, o patrimônio ainda é suficiente para manter a qualidade de vida, repassando o problema para frente, quando a atividade deveria ser assumida pela próxima geração. Isso explica a temática crescente envolvendo sucessão familiar.

No caso dos pequenos produtores – a grande maioria – o problema passa a ser orçamentário, afetando a qualidade de vida, a dignidade e a própria condição de sobrevivência. As alternativas que restarão aos pequenos são informalidade, ilegalidade (desmatamento, caça etc.) e uso de técnicas inadequadas, como é o caso do fogo para limpeza das pastagens. Fogo que, não custa lembrar, acaba fugindo do controle e invadindo outras fazendas, matas e até mesmo áreas urbanas.

Quanto menor for o preço recebido pelo gado, mais rápido será o processo de exclusão e a quantidade de pequenos produtores em situações de desespero financeiro. Hoje, em termos de sustentabilidade, a melhor alternativa seria aumentar o mercado da carne bovina brasileira. Não se trata de reverter ou impedir a exclusão, mas sim de desacelerá-la, de forma que outras opções sejam criadas pela cadeia produtiva de carne bovina ou em outras atividades. Assim, um trauma inevitável pode ser melhor administrado pela sociedade minimizando o sofrimento de tantas vidas envolvidas.

O resultado prático do projeto de lei absurdamente aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo não combaterá o problema que o autor deputado Feliciano Filho propôs defender: ao contrário, seu efeito será maléfico do ponto de vista sustentável. Embora a palavra sustentabilidade seja usada com frequência, são raros aqueles que entendem o conceito: se uma das bases do tripé falhar, as outras duas irão ruir.

Enfim, ironicamente, o discurso dos ambientalistas sempre alinhou a sustentabilidade com o esforço em reduzir o consumo de carne bovina, quando, na verdade, deveria estar promovendo o contrário. O projeto, aprovado pelos deputados paulistas, é prova inconteste do despreparo e da irresponsabilidade dos representantes da sociedade que baseiam suas decisões no obscurantismo de agendas alienadas e não na ciência.

E, no caso do projeto de lei em questão, o impacto negativo não se resume aos pequenos produtores. Há toda uma cadeia produtiva por trás daquela carne que chega nas mesas dos consumidores.

Em 2016, a cadeia produtiva da bovinocultura de corte movimentou R$ 504 bilhões no Brasil, atividade que empregou diretamente 3,2 milhões de profissionais nas fazendas, frigoríficos e em serviços diretos prestados aos estabelecimentos produtivos. Ainda, considerando o efeito-renda pela relação proposta por Najberg e Ikeda (1999), outros R$ 28 bilhões em salários seriam mantidos anualmente pelo fluxo financeiro nos comércios regionais, movimentado pelos empregados diretamente na cadeia produtiva. O cálculo não inclui os empregos indiretos, mantidos na indústria de insumos, maquinários e outras atividades que se relacionam com a produção de carne bovina, que serão computados em outras cadeias produtivas.

Os números, apesar de grandes, ainda são conservadores diante da dificuldade de mensurar as variadas correlações entre as atividades e a incidência da informalidade em todas as etapas de produção.

A figura 2 resume o total movimentado em todos os elos da cadeia produtiva e inclui as estimativas de lucro, arrecadação e massa salarial criada por efeito renda (arrecadação e massa salarial por efeito renda não entram na soma do total).

A estimativa de lucro bruto (antes dos impostos) é setorial. Há empresas que lucraram mais, enquanto outras operaram no prejuízo. A margem bruta setorial, somando as operações nas fazendas e frigoríficos, teria ficado em torno de 8% sobre o faturamento de fazendas e indústrias.

O lucro é fundamental para manter a produção com todas as suas conexões. Como ocorre em qualquer atividade econômica, o fluxo financeiro e os empregos são garantidos pela expectativa de resultados com a produção de um determinado bem, no caso, a carne bovina e os diversos derivados obtidos a partir do abate.

Com base no movimento de 2016, para cada R$1,00 de lucro bruto obtido na produção de carne bovina, outros R$27 foram absorvidos em alguma outra etapa da cadeia produtiva.

O projeto de lei do deputado Feliciano Filho tem efeito sobre estabelecimentos que exerçam suas atividades nos órgãos públicos, assim como no fornecimento de alimentos em escolas públicas do Estado. No entanto, pela própria justificativa do projeto de lei, a intenção é consolidar a cultura da segunda-feira sem carne no estado de São Paulo, pela força da lei.

No Brasil, a campanha é coordenada pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), o que evidencia o conflito de interesses entre o exercício do Poder Legislativo e a defesa de projetos elaborados por grupos de interesse que também buscam apoio financeiro no mercado.

Na possibilidade do sucesso da campanha fomentada com reforço do projeto de lei, apenas no Estado de São Paulo o impacto potencial poderia ocasionar uma perda anual de R$29 bilhões ao longo da cadeia produtiva de pecuária de corte no Brasil, considerando apenas a bovinocultura. Essa perda ocorreria pela queda direta na receita e nas margens dos pecuaristas e frigoríficos. O cálculo foi feito com base nos números detalhados, cujo estudo foi resumido na figura 2, e na estimativa do consumo de carne bovina em São Paulo, considerando a população do estado, o consumo per capita médio e distribuição do consumo em proporções iguais para cada dia da semana.

Junto com o prejuízo, cerca de 250 mil postos de trabalho seriam fechados no Brasil, além de acelerar as dificuldades que já afligem os pequenos produtores.

Também é possível esperar a perda de outros R$5 bilhões em salários criados indiretamente pela atividade, através do efeito renda. A arrecadação da atividade produtiva poderia recuar entre R$6 bilhões e R$10 bilhões.

Os números estimados para o impacto são conservadores e precisam ser melhor dimensionados a partir de um estudo mais aprofundado. Certamente o impacto negativo será maior do que o apresentado.

O projeto de lei é um perfeito exemplo do mal que pode ser feito para uma sociedade quando grupos privilegiados, que se julgam moralmente superiores, acessam poder suficiente para determinar como as outras pessoas devem se comportar. Nada mais inadequado diante das expectativas atuais dos cidadãos que pedem cada vez mais por menos Estado.

 

*Maurício Palma Nogueira é engenheiro agrônomo pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” /USP, com especialização em administração rural. É consultor desde 1998, acompanhando empresas e analisando cenários e resultados financeiros nas cadeias produtivas de proteína animal. Planejou a metodologia e coordena o Rally da Pecuária.